terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Comércio local

Encostei-me à frontaria de uma loja encerrada.
Estranhamente pensei, porquê?
Não conseguia encontrar o motivo.
Nem a verdade, nem a mentira!
Mesmo que puxasse pelas minhas pequenas lembranças de Feng Shui!

Amparava com o corpo os silêncios escondidos por debaixo daquela grade blindada.
Fechada, tão sómente.
Sem ajuda, nem força para se erguer, como fazia habitualmente todos os dias.
Soluçava às pedras da calçada por auxílio.
O que mais queria era desmistificar a complexidade da evidência! Seria possível?
Nem eu sei!
Poderia, mentalmente, formular perguntas e inventar dúvidas que se traduziriam em nada.
Apenas que aquela grade fechada, valorizava o que, certamente, ainda se encontraria no seu interior.

A verdade é que, após algumas semanas, a loja, a grade, a ourivesaria, encontram-se definitivamente fechadas.
Sem que possamos descomplicar a situação que para mim é, de todo, um bicho-de-sete-cabeças!

sábado, 28 de janeiro de 2017

Chiado

Fomos passear à Baixa. Há quanto tempo não o fazíamos!
O bulício do Chiado invadiu-nos de uma forma comovente.

Apanhámos um táxi em Benfica que, com uma condução cuidada e um diálogo afável por parte do jovem motorista, nos deixou à porta da Brasileira.
Lá, para além de Fernando Pessoa, esperavam-nos três amigos.
Recém chegados de Sheffield e instalados na Praça do Município, mostravam desassombradamente o seu contentamento por estarem em Lisboa.

Apesar do Inverno, o fim do dia estava repleto de agitação.
Talvez por se tratar de uma sexta-feira e fim de mês.
O sol não brilhava.
Tinha chovido.
Mas o vento e o frio gélido que se tem feito sentir, tinham-
-se escondido atrás da calçada portuguesa que, de tão polida e brilhante, me impunham algum respeito!

Conversámos  um pedaço de tempo. Gostosamente!
Tomámos café, trocámos livros e informámos quais os ex-
-libris da cidade.
Já na rua, despedida, beijos desencontrados, abraços calorosos.
Deambulavam, por ali gentes, como nós, em encontros de fim de tarde, procurando o lenitivo para a sua semana de intenso labor.

Resolvemos então, tal como alguns, descer sorrateira e vagarosamente até ao Rossio.
Em ambiente feérico, as lojas abertas eram, para quem comprava, templo de felicidade e harmonia.
Conversas persistentes, em línguas várias, faziam a parafernália da comunidade que se estendia naquela Praça.
De facto, Lisboa está na moda. Pensava!

Aos Amigos Steve e Adrianne um obrigado por nos terem proporcionado esta saída, onde os transeuntes babam promessas esvoaçantes, as crianças trocam sorrisos sinceros e nós, ficamos sob o olhar atento do Poeta, à espera da próxima vez!


quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Artesãos

Somos uma família de artistas.

Tocadores de cordas e sopro.
Escritores e pensadores. Prosadores e poetas.

Pintores e desenhistas.
Fotógrafos e contadores de histórias.

Cantores de fados e coralistas.
Ginastas e dançarinos.

Cozinheiros e operários.
Investigadores e engenheiros.

Somos de tudo um pouco.
Certo ou incerto, como a própria vida.
Cedo ou tarde, como a própria morte.
Sincero ou hipócrita, como o próprio amor.
Rosa ou cinzento, como a própria aurora.
Seguro ou indecifrável, como a própria noite.
Que tomba sobre nós.
Pesadamente.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Espaço AmArte

Década de 90. Anos de mudança, decisivos na minha vida.
Muita coisa tinha acontecido.
Muita coisa iria passar-se, deixando esvoaçar retalhos do passado.
Adaptação, escolha, continuação de uma vida ainda por viver.
Procura de um novo rumo, procura de um novo sítio. Procura de alguém para partilhar afectos.

Recordava os olhos de meu pai, chorosos e embaciados, ao ver-me partir.
Recordava o silêncio de minha mãe, num recado mal construído e que ficou por dar...
Profundamente comovido e com poucas palavras, meu pai dizia:
" Escolhe com critério o teu caminho e com cuidado as
   amizades
   A cidade de onde vieste e para onde vais, é dantesca no
   mal.
  O bem, nem sempre se encontra ao virar de uma
  esquina ".

Mas eu vim. Sem medo.
Tentando condicionar o meu quotidiano àquilo que eu mais queria e sabia fazer. Arte!
E com ideia profunda neste ofício, fi-lo. Imediatamente!
Av. da República, Rua do Salitre, Praça d'Alegria, Av. do Colégio Militar, Areeiro e por aí fora...

Que lugares eram esses?
Eram pedaços de chão onde, a amabilidade e o diálogo tranquilo emergiam naturalmente.
Nas paredes que sustentavam o habitáculo, descobriam-se quadros. Esculturas, instalações. O que fosse!
Desnudavam-se a profundeza e intimidade de pintores, músicos ou poetas!
Em dias de " vernissage " ali se debatiam e cruzavam as grandes forças e dúvidas do Universo.

E eu, por vezes alheia a tudo e a todos, tentava não transparecer as minhas angústias interiores.
Sempre sorridente.
Momentos havia, em que encostava o rosto às paredes, dialogava com os quadros, vestia a sua roupagem, remexia memórias e fazia do meu trabalho uma música celestial.

Com esforço, palavras, formas, cores, sentidos, luz e sombras, construí a vida que tenho hoje.
Construí um palácio para viver.
Não  o  " Palácio da Lua " de Paul Auster.
O meu palácio!!!
.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Night Window

Acordei,
com o vento forte e a vidraça aberta.
Deixei o pensamento pendurado no caixilho da janela,
 com medo  que a noite o levasse para longe de mim.
(pintura de Edward HOPPER)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

A comida e os afectos

Os meus netos são o alimento mais gostoso e suculento que jamais conheci. Indubitavelmente!

Quando me olham, com ternura, fazem-me recuar no tempo.
Recordo, logo, o arroz doce da Avó Mina. De lamber os beiços.
Delicioso!
Assim é aquele abraço. Bem apertadinho.
Quente. Até que os ossos derretam!

Quando ficam impacientes, com fome, vem-me à memória o pato corado no forno de lenha.
Cozinhado em tabuleiro de barro bem untado.
Com linguiça por cima. Estaladiço.
De comer e chorar por mais!
Assim são os seus beijos. Infindáveis, às vezes.
Brincalhões, provocadores. Cómicos, até!

Quando o sono aperta e o desespero mostra a sua rebeldia,  nada mais posso recordar do que o néctar de Baco.
Pisado na velha adega do Sr. Joaquim. Dias e dias.
Era uma festa!
Cantigas, risos e falas acompanhavam
aqueles movimentos cadenciados, até à exaustão.
Nada de martelo. Puro!
Bom grau. Encorpado. Para consumo da casa.
Fazia-nos adormecer ou trocar os pés quando, não habituados, bebíamos um pouco exageradamente.
Assim acontece com os meus pimpolhos.
Um, adormece em serões de família, mesmo que o entusiasmo teime em não fechar-lhe as cortinas.
Outro, adormece no carro. Mesmo em alturas pouco próprias.
Longe de casa, sem condições de ser transportado até à cama que, indiferente, o espera.

Quando rejobilam de alegria, levam-me ao Verão.
Às vindimas. Ao rabisco!
À Mata do Caetano.
Às gargalhadas na eira, ao luar.
Aos domingos, a mastigar tremoços e pevides, à porta da Rosárita.
Ao adro da Igreja do Senhor Jesus, onde os namoros começavam!
À feira d'ano, no 15 de Agosto, a macerar cavacas. Das Caldas!

Enfim:

     " A comida e os afectos são como os irmãos "
     " Pela barriga se conquista o homem "
     " Pelo amor se constrói o mundo "

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Why not?

Ontem estreei os meus ténis, oferecidos no Natal.
Lindos. Cómodos. Andar de pantufa..
Pisava o alcatrão mal construído, como quem fazia uma tarefa facilmente exequível.
Quentes. Largos. Castanhos.
Não me apertavam as linhas que, por vezes embaraçadas, cruzavam o destino de meu corpo.
Senti-me muito bem com eles mas percebo que a questão seja complexa. Para quem não gosta ou não usa ténis.

É como o casamento.
Para quem permanece, anos a fio, agarrado ao celibato.
Solteiro só porque sim ou talvez não!
Casamento.
Entre pessoas do mesmo sexo.
Entre pessoas de sexo diferente.
Tanto faz!

Terão que caminhar, correr ou saltar, confortavelmente, em alcatrão liso ou esburacado.
Em estrada de terra batida ou em tartan.
Onde são olhados com algum escárnio.

Os meus ténis, com seus atilhos, poderiam ser a representação  de uma sociedade aberta ou fechada, onde os passos iriam sendo dados sem fenómenos sugestivos.
Poderiam fazer do seu, o meu caminho.
Poderiam fazer Lei!
Onde, solteiros ou casados, pretos ou brancos, pequenos ou grandes, homo ou heterossexuais, pudessem caminhar confortavelmente.

Por tudo isto, acredito que ainda haja muita gente pouco conhecedora.
Não sabem como é bom andar livremente.
De ténis.
Sem pena. Sem dor. Sem indignação!

sábado, 14 de janeiro de 2017

A minha cadeira

Design António Laureano.
Chamámo-lo a nossa casa.
Colocámos dúvidas, ideias. Trocámos opiniões.

Pedimos que se deixasse inspirar pelos móveis que já vestiam as paredes daquela sala.
Volvidos dois ou três encontros, mostrou-nos alguns esboços. Mobiliário rectilíneo, moderno, minimalista!
Integrava-se, em tudo, no peso dos anos e história impregnados naquelas estantes de madeira antigas.

Fazíamos, sim, questão, que a história daquele local, não se afogasse naquele aparato moderno que nos era sugerido.
Conversámos. Pensámos. Acabámos por gostar.

Pedimos-lhe algum critério no trabalho.
Que o fizesse com afinco, com amor e nos trouxesse rapidamente uma mesa. Grande.
Onde pudéssemos juntar a família à volta do repasto.
E cadeiras!

Ao cabo de umas semanas, poucas, ei-las!
A mesa, completamente lisa. Tampo de vidro.
Quatro prumos em forma de pernas.
Austeros, resistentes. À antiga.
As cadeiras, um pouco menos militarizadas.
Mas igualmente aprumadas e disciplinadas como se estivessem na parada!

Este mobiliário, perene, ao longo dos anos, tem alojado muita gente.
De todas as idades. Cores e credos.
Junta-se, discretamente, às prateleiras já existentes e faz a sua própria história.
Convida poetas e pintores. Médicos e loucos. Crianças e adultos.
De tudo se tem falado. Sem tabus, sem pudores.
Discute-se amor e paixão. Sofrimento e política. Guerra e morte. Nascimento. Crenças e descrenças.
Fica sempre o rastilho para a próxima vez!

A minha cadeira, agora, tem uma almofada ortopédica.
Alta. Especial.
Calada, ouve os meus temores.
Por vezes, pede-me contenção nas palavras.
Acolhe, sem rancor, os meus anseios.
Com a tolerância de quem se deixa amolgar, aguarda paulatinamente que o tempo a transforme em memória.
Para, tal como os móveis, poder contar a história!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Pneumonia

Onze horas.
Mais um dia de avaliação médica no HCV.
Chegada lá, à hora marcada, verifiquei com algum espanto que o atropelo de pessoas e coisas era um constante desencontro.
Para descontentamento de muitos. Quase todos.

Ouviam-se as vozes simpáticas e prestimosas das administrativas, reclamando presenças.
Para a esquerda. Para a direita.
Exames, consultas, pagamentos, informações.
Os médicos, num reboliço frenético, faziam as receitas saltar-lhes das mãos em piruetas desfeitas.

Os ossos de meu corpo, cansados, ajeitaram-se num sofá mal concebido.
De quando em vez, sussurravam por tréguas.
Inquieta, olhava o relógio.
Via as pessoas passarem. Estonteada, enchia-me de tédio.
Os cheiros misturados e adulterados pela transpiração, causavam-me náuseas.
As conversas balofas, traziam-me o desejo do café que corria no último piso.

Exasperada e sem conforto, voltava a afundar-me no sofá.
Uma e outra vez.
Tentava encontrar a forma mais confortável de encaixar as nádegas dormentes.
Enterrava-me no nada e esperava que o amanhã chegasse.
Distante!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Por mares nunca dantes navegados

Na caravela de antanho, parto à procura do que não sei.
Mar revolto.
Oceano infinito.
Memória de lendas e fogos de São Telmo.

Sinto a maré cavalgar em meu corpo.
Salpicos a secarem em meus lábios.

Procuro entre o nevoeiro.
Os monstros, não podem acordar-me.
O escorbuto, dizima-os.
As sereias, enciumadas, não querem mostrar-se.

Continuo minha rota desviada pela corrente.
Escuto, apenas, o barulho das ondas entrelaçando meus cabelos.
Até à cintura!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Soares é fixe

Hoje, acompanhando as notícias televisivas quase a par e passo, relativamente à morte e despedida a Mário Soares, deparei-me com o politólogo Adelino Maltez.

Abordava vários aspectos da vida de Mário Soares com entusiasmo no linguarejar, expressos de uma forma prodigamente eloquente.

Original e simples, facilmente compreensível, fascinou-me o modo como conseguiu pôr-me a olhar para um Mário Soares de múltiplas facetas desconhecidas. Dizia:

" ... A tua alma, Mário, é a nossa alma, um desassossego ".
" ... Mário não nasceu para odiar, nasceu para conversar ".
" ... Homem imprevisto e sem ódios definitivos ".
" ... Um pouco de nós morre com ele, ele é a nossa
       circunstância ".

Agora olho para Mário Soares com olhos diferentes.
Figura brilhante do século XX.
Advogado, político, escritor, estadista, mas não só!!!
Um mito próximo de todos!

E na bruma dos mitos, fica o seu rosto encostado ao meu.
Despojado da matéria e perpetuando a longevidade de um sonho.
O seu!
O nosso!!!

domingo, 8 de janeiro de 2017

Enigma

As cuecas da vizinha, dependuradas no estendal.
Desbotadas de cor, elásticos frouxos mas cheias de vento.
Expressão máxima da sua intempestiva verdade.

Residem, ali , décadas de vivência e resistência.
Anos repletos de sombras cinzentas ou rosa , com uma forma de vestir característica da época.

Amplas, como amplos foram os seus horizontes.
Largas, cheias de mistérios e segredos por desvendar!
Que sentimentos estarão no interior de umas cuecas?
Sejam elas bem ou mal lançadas!

Uma vida facilmente referenciável, onde a quimera é um sonho volátil que emigra até a próxima vez.
Nas asas do sonho vão as cuecas da vizinha.

E eu fico a olhar o estendal, até que haja mais um trapo estendido, capaz de desafiar a minha capacidade de sonhar!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Eduardo

Partiste.

Todos vamos atrás uns dos outros, sem data, dia ou hora marcada.
Privilegiada ignorância!
Agora resta-me chorar a tristeza sobre a memória de quem gostava de mim.

As tuas últimas palavras, ditas emocionadamente, ficarão à porta do meu coração, a iluminar os dias que me faltam até à última morada.

Boa viagem!

domingo, 1 de janeiro de 2017

2017

Entra o ano em profusão de pirotecnia. Pelo mundo todo.
Com alegria, segurança reforçada, champanhe, música e dança.
Alienação planetária na sequência dos fusos horários.
Paris, Dubai, Funchal, Londres, Lisboa...

Onde estou, os telhados ecoam canções que sobem no ar por entre as batidas de tampas de alumínio.
A rua, quase deserta, sem carros, sem luz e sem gente, abafa os cacos partidos dos tachos de barro por já não terem uso.

E eu, através da vidraça, olho o ano que agora começa.
Espero que passe manso e sem mossa, com estrelas no céu, homens fortes e braços livres.
Estico as pernas doídas pelo desconforto catastrófico da tosse mas o sono não vem.
Vou fazer como dantes, apesar do rebanho estar esgotado. Deitar-me e contar carneirinhos.
Misturá-los com pirilampos e tentar inventar um estranho equilíbrio entre eles.
Fazer uma manta incomum com os retalhos do dia.
Aconchegar-me com ela e tentar adormecer.

Junto à cama, com indomável coragem e a meu lado , a escuridão procura a minha companhia.
Beija-me sensível, acalma-me os nervos, tagarela baixinho para não a confundir com o dia.

Então, espreguiço-me lânguidamente, como se fosse um gato. Tapo a cara com o lençol, ponho mais roupa à volta das pernas e vou tentar sonhar até ser manhã!