terça-feira, 30 de maio de 2017

Janela de Sonhos

Deito os meus sonhos na cama macia de margaridas.
Sem travesseiro. Sem eira, nem beira.
Adormecem de supetão!

À noite, com o orvalho, acordam sobressaltados.
De tanto sonharem!

Pulam, saltam, brincam. Agitam-se!
Como as cabras no meio das rochas,
no meio dos montes carcomidos,
no meio do nada.

Ainda assim imaginam, confiantes, um amanhã cor de rosa.
Neste tempo sem estrada,
neste sonho sem asas.

E no meio das flores, deixam, a agonia de uma noite inacabada.

terça-feira, 23 de maio de 2017

" Adeus amor "

Aqui moravam a Beatriz e o filho, de sua graça Victor, de sua alcunha " Cagão ".
Filho de pai incógnito, deu-lhe Deus à nascença um pequeno atraso mental.
Não lhe dificultava grandemente a vida mas nunca trabalhou. Nada dotado.
Cumpria, apenas,  escrupulosamente os recados que lhe incumbiam.
Bem ou mal, lá andava aldeia acima, aldeia abaixo.
Sempre bem disposto.
Envolvia as pessoas com o seu olhar perscutante e a sua voz ressonante, que ecoava com um timbre especial. Só ele!
Cumprimentava aqueles de quem gostava com um slogan recorrente - " adeus amor " !!!
Riam-se dele.
Troçavam muito. Intensa e fortemente mas ele, pouco se importava.
Ria-se também e acenava a todos.
Com a sua mão direita fazia movimentos em forma de leque, como se de um rei se tratasse!
Que mais podia sentir aquele coração?
Unicamente a graça do que fazia e a magia da retribuição!
Gente muito humilde, de limpeza imaculada e de uma generosidade característica dos pobres.
Dos seus parcos haveres, faziam questão de dividir e dar aos amigos, o melhor, reservando para si apenas as migalhas.
A Beatriz, já partiu há uns anos.
Morreu no hospital da vila, sem luxos nem mordomias, mas sem lhe faltar nada. Foi tratada, até ao fim, como qualquer um.
O " Cagão " foi para um lar, onde entregava o seu mísero pecúlio, que lhe fora atribuído pela Casa do Povo de então.
No lar, continuava a fazer recados, a andar arranjado e limpo, e a acenar às pessoas.
" Adeus amor " é uma frase singela mas carregada de  emoção e intenção.
Fica-me gravada na memória, para sempre, aquela figura pitoresca. Aquela voz. Aquele olhar.
Aquele menear de tronco. Aquele aceno.
Aquela mão, que tantas vezes toquei!
Amar é um sentimento humilde e o " Cagão " sabia amar!
Sabia dar, o que tinha!
Com fervor!

terça-feira, 16 de maio de 2017

Vida ...

Uma felicidade mentirosa
Encapotada num sorriso perpétuo
Traduz a ironia do destino
A teatralidade da vida
O contexto precário do dia a dia
Num caldeirão que nos consome lentamente
Até à evaporação total

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Simone e Luís

Hoje lembrei-me do Luís e da Madame.
Na verdade, nunca mais soube nada deles.
Venderam aquela casa solarenga e foram-se dali, sem mais aquelas!
Nunca existiram sequelas entre nós.
Tudo correu sempre às mil maravilhas, numa comunhão de afectos e ajuda fora do comum.
Eles e eu.
Eu e eles.
Todos os meus. Pai, mãe, filhas.
Amigos, Odete, Estelita, Rosárita.
Era um desatino de gente sempre a entrar e a sair daquela casa, que a todos inspirava medo.
Menos a nós!
Ali, viviam-se e aprendiam-se lições de vida.
O Luís, atacado de reumático,  já quase não esculpia.
Sentado no seu posto de observação, criticava, dava opiniões como se fosse um adolescente, tecia comentários elasticamente certos ou enfadonhos.
Impunha a sua vontade.
Duvidava dos outros, arrogantemente.
No entanto, era castiço e eu gostava dele.
Castiço, tão castiço!
Castiço. Talvez não seja a palavra certa para o qualificar, mas é o que me ocorre neste momento em que olho para trás e o recordo com carinho.
Eram simplesmente especiais. Ele e a mãe.
A Madame!
Tão francesa! Tão sofisticada!
De físico muito pequeno. Muito bem modelado.
Tinha sido cobiçada e muito amada. Por muitos homens.
Por muitas mulheres.
Até pelo " senhor engenheiro ", seu marido, que morrera em África, numa enxurrada.
Passávamos tardes inteiras a conversar e a rir até às lágrimas.
Inventávamos cenários e histórias, num universo de alegria e cor. O único que nos era familiar.
A Madame sentava-se ao piano e tocava, tocava.
Brilhantemente!
Eu, sentada a seu lado, cantava, cantava. Melodias de Edith Piaf!
Aquelas tardes eram um sonho, um desvario.
Flertávamos, em gestos, actos e imaginação.
Procurávamos, no espelho grande do salão, olhares de cumplicidade.
Tocávamos na pele do mais próximo e sentíamos, instantaneamente, todos os terminais nervosos a excitarem-se.
A pele à volta dos lábios destendia-se, de tanto falarmos e rirmos.
Não havia lugar à criação de rugas e o fígado estava em pleno exercício das suas funções!
Mas tudo tem o seu término.
As tardes, os sorrisos e até a amizade, chegaram ao fim.
Foram-se embora sem deixar rasto. Até hoje.
Mas o Luís e a Madame, permanecem na minha história de vida como uma imagem dantesca, cómica e reluzente.
Ela, estará por certo num velório de um fabiano qualquer, a rir à gargalhada!
Ele, quem sabe, entregue à sua sorte, espera sobranceiro que o dia do juízo final lhe bata à porta.
Eu, quando recordo estes episódios, questiono-me:
- será que poderia ter evitado, poderia ter interferido de
  alguma forma, para que a sua ausência não acontecesse?
Penso nisso.
Penso, penso e não encontro resposta!!!