terça-feira, 26 de março de 2019

O Bolinhas ...

Tinha um carro novinho em folha, que me fora oferecido pelos  meus pais, num dia de aniversário.
Branco, de sua matrícula  DL-70-77, de sua marca Honda, de seu tamanho pequeno.
Grande apenas nos segredos, risos e conversas que guardava. Para si.
Fazia as delícias das minhas amigas e as minhas próprias.
Éramos íntimos, confidentes. Éramos unha com carne!
Com gasolina que hoje dizemos à  boca cheia muito barata (2$50/litro), enchia o depósito que dava para a semana e muita folia no seu fim ...
Passeávamos muito, engolíamos quilómetros, digeríamos locais.
Andávamos por terras nunca dantes desbravadas.
Amantes da viagem,  corríamos " Seca e Meca ".
Sempre com o Bolinhas cheio.
Eu e as minhas amigas soletrávamos, deliciadas, o nome de cada aldeia,  de cada cidade, de cada canto.
Parávamos a meio caminho, quando o calor era intenso, para beber algumas gotas de água doce e potável,  que caíam de uma fonte qualquer, que a idade tornara amarga.
Os corpos jovens, a vontade grande e um carro nas mãos,  dava-nos o privilégio  de fazer amizades no ímpeto do momento.
Conheci gentes que me saciaram a curiosidade com histórias de primaveras passadas, sonhos de futuro inatíngivel, de adultério inimaginável, de naufrágios à vista de terra,  de lobisomens à  passagem da meia-noite  ...
Histórias de tudo e de nada, onde (por vezes) o atraso atávico, proporcionava a entrega de bandeja de um segredo que lhes estava corroendo a alma.
Foi assim durante anos.
Ai se o meu carro falasse, tinha muito que contar!
Porém,  foi-se um belo dia o meu Bolinhas para Guimarães.
Em troca por um carro melhor, mais potente, mais confortável.
Chegou pronta e rapidamente o carro novo.
Imponente à  saida do stand, brilhante, lindo por sinal.
Mas não tinha a alma do anterior.
Nem paciência para me ouvir.
Nem cofre para guardar as minhas confidências.
Só a gasolina continuava na mesma, barata.
Eu e as minhas amigas continuávamos também a passear, mas nada era igual.
Nem a cor, nem a matrícula, nem o tamanho.
Era maior, confortável e mais potente.
De sua cor vermelha, dava nas vistas, mas era assexuado.
Não nos ligava patavina, apenas nos transportava.
Na incerteza de o querer, no medo de o perder,  habituei-me a não lhe contar as minhas aventuras.
Estacionava-o à distância de qualquer tipo de olhar, curioso ou histérico.
Paria sózinha a minha exuberância e as minhas alegrias espraiavam-se cada vez mais longe.
O meu carro já não era, mais, o meu confidente e amigo.
Era tão sómente o meu espaço e comodidade no transporte.
As minhas amigas foram deixando comigo apenas os contornos de seus corpos e risos.
E eu, fiquei com todos os anjos e demónios, que se eternizam no arrebatamento da vida!


terça-feira, 12 de março de 2019

Tristeza

Triste é

Não ter família
Nem realização
Não ter amigos
Nem poder sonhar
Não ter paixão
Nem arrebatamento
Não ser criança
Nem saber brincar
Não ter um livro
Nem saber escrever
Não ter amante
Nem ser adúltero
Não ter orgasmo
Nem sentir a posse
Não ter prazer
Nem rasgar o céu
Não ter pecado
Nem confissão
Não ter paleta
Nem ousar pintar
Não ter liberdade
Nem querer voar
Não ser papoila
Nem querer gritar

Triste é
Não ser feliz
Nem sequer tentar