quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A-dos-Ruivos

Na minha pequena aldeia, há um largo com um coreto.
E um banco.
Nos baixos do coreto morou, anos a fio, um senhor sapateiro, de sua graça Ambrósio.

Homem de poucas falas.
Encobria a falta de cultura com um atendimento prazenteiro, cheio de boa vontade, que a ninguém passava despercebido.

De natureza boa, denunciava muitas vezes o pouco conhecimento da profissão.
Impressionava os clientes e amigos apenas pela prontidão no auxílio, que chegava a ser imprevisto.
Criava empatia.

Morreu há anos.
Para mim, ficou sempre gravada a imagem daquele provinciano que me consertava os sapatos.
Prontamente.

Através da transparência dos seus olhos, conseguia ler episódios do quotidiano passados naquele pequeno burgo.
Segredos chocantes que lhe haviam sido confidenciados.
Vulnerabilidades deste e daquele que, ao tempo, eram tidas por complexas e perturbadoras.

Poucos, hoje, são como o Ambrósio.
Simples, genuínos.

Algumas vezes, decorado com o néctar de Baco, trazia para a sua realidade mais próxima, o fenómeno da solidão.
Todos lhe davam carinho e compreensão.
Dizia, nessas alturas, algumas obscenidades à toa, julgando fazer uma figura catita!

E aí, as palavras poucas, daquele homem fechado, jorravam em catadupa, como a água quando se abria a torneira da Fonte Santa.
A fonte, essa, também é lá.
Na minha aldeia, a alguns metros do largo.

Aquela fonte era uma dádiva da Mãe Natureza.
Brotava água e água, abundantemente, cristalina, gelada!
Servia para saciar o cansaço de quem trabalhava a terra de sol a sol!
Mas os anos, na sua cruel indiferença, trataram de a secar!

Hoje, ainda existe o banco e o coreto
A fonte e os degraus, quase em escolhos.
E a torneira, agarrada ao tempo, já nada deita.
A não ser a memória do rosto do Ambrósio, num céu anónimo, num dia sem idade!

12 comentários:

  1. O sapateiro da tua aldeia também existiu nas grandes cidades, normalmente enfiado em caves ou vãos de escada de prédios antigos. No Portugal de "Deus, Pátria e Família", ou "Fado, Futebol e Fátima", onde nada acontece muito longe da tua aldeia, para além do trabalho mal pago, que mais poderia fazer o remendão do que apanhar uma bebedeira por semana? Tragicamente, aqui, ainda hoje continuam a perder-se as memórias da vida sob "um céu anónimo, num dia sem idade".

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E na tua terra natal não havia nenhum Ambrósio?
      Amola-tesouras, tanoeio, vendedor de sonhos ou apenas o bêbado da " santa terrinha "?

      Eliminar
    2. Em Viana do Castelo há muitos bêbados, especialmente em dias de festa!

      Eliminar
  2. Parabéns! Adorei e agora quero mais. Bjinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É uma questão de atenção às minhas entradas no blogue.
      Obrigada.
      Irei continuar a escrever.

      Eliminar
  3. Eu já não me lembrava do Ambrósio, mas isso faz-me lembrar que há muito para escrever sobre essa terra ;-) Vamos a isso, desse lado e deste lado:-) <3

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O que tinha uma certa graça e até dava algum gozo, era tentar escrevermos algo em conjunto.
      Achas a sugestão estarola ou eras capaz de alinhar?
      Bjos.

      Eliminar
  4. O retrato de um homem do povo, que enternecia a alma de quem o escutava.
    Uma aldeia em que as coisas visíveis se vão degradando, mas aos olhos de quem as recordam existirão para sempre ... Testemunho singelo prenhe de afetos! Abracinho meu

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Até parece que a Teresa conhece a minha aldeia.
      Fantástico!
      Beijinho.

      Eliminar
    2. Maria da Nazaré eu apenas vi o que estava por trás das tuas palavras.
      O mérito é todo teu por a saberes descrever com tanto sentimento <3

      Eliminar
  5. Faz lembrar uma personagem da minha cidade, o Candela, que anda sempre pelas ruas de Braga de chaves na mão. Se calhar acha que poderá fechar a porta que está sempre aberta...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Qual será a porta que o Candela quer fechar?
      A do céu ou a do inferno???

      Eliminar