quarta-feira, 3 de maio de 2017

Simone e Luís

Hoje lembrei-me do Luís e da Madame.
Na verdade, nunca mais soube nada deles.
Venderam aquela casa solarenga e foram-se dali, sem mais aquelas!
Nunca existiram sequelas entre nós.
Tudo correu sempre às mil maravilhas, numa comunhão de afectos e ajuda fora do comum.
Eles e eu.
Eu e eles.
Todos os meus. Pai, mãe, filhas.
Amigos, Odete, Estelita, Rosárita.
Era um desatino de gente sempre a entrar e a sair daquela casa, que a todos inspirava medo.
Menos a nós!
Ali, viviam-se e aprendiam-se lições de vida.
O Luís, atacado de reumático,  já quase não esculpia.
Sentado no seu posto de observação, criticava, dava opiniões como se fosse um adolescente, tecia comentários elasticamente certos ou enfadonhos.
Impunha a sua vontade.
Duvidava dos outros, arrogantemente.
No entanto, era castiço e eu gostava dele.
Castiço, tão castiço!
Castiço. Talvez não seja a palavra certa para o qualificar, mas é o que me ocorre neste momento em que olho para trás e o recordo com carinho.
Eram simplesmente especiais. Ele e a mãe.
A Madame!
Tão francesa! Tão sofisticada!
De físico muito pequeno. Muito bem modelado.
Tinha sido cobiçada e muito amada. Por muitos homens.
Por muitas mulheres.
Até pelo " senhor engenheiro ", seu marido, que morrera em África, numa enxurrada.
Passávamos tardes inteiras a conversar e a rir até às lágrimas.
Inventávamos cenários e histórias, num universo de alegria e cor. O único que nos era familiar.
A Madame sentava-se ao piano e tocava, tocava.
Brilhantemente!
Eu, sentada a seu lado, cantava, cantava. Melodias de Edith Piaf!
Aquelas tardes eram um sonho, um desvario.
Flertávamos, em gestos, actos e imaginação.
Procurávamos, no espelho grande do salão, olhares de cumplicidade.
Tocávamos na pele do mais próximo e sentíamos, instantaneamente, todos os terminais nervosos a excitarem-se.
A pele à volta dos lábios destendia-se, de tanto falarmos e rirmos.
Não havia lugar à criação de rugas e o fígado estava em pleno exercício das suas funções!
Mas tudo tem o seu término.
As tardes, os sorrisos e até a amizade, chegaram ao fim.
Foram-se embora sem deixar rasto. Até hoje.
Mas o Luís e a Madame, permanecem na minha história de vida como uma imagem dantesca, cómica e reluzente.
Ela, estará por certo num velório de um fabiano qualquer, a rir à gargalhada!
Ele, quem sabe, entregue à sua sorte, espera sobranceiro que o dia do juízo final lhe bata à porta.
Eu, quando recordo estes episódios, questiono-me:
- será que poderia ter evitado, poderia ter interferido de
  alguma forma, para que a sua ausência não acontecesse?
Penso nisso.
Penso, penso e não encontro resposta!!!





2 comentários:

  1. Toda a passagem pela vida é fugaz e não deixa rasto. Até a memória colectiva se apaga ao fim de alguns séculos.

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    1. Umas mais que outras, convenhamos!
      🎆🎆🎆🎆🎆🎆

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