Hoje
Sem dia e sem voz
Quero fazer um poema
Mas o tempo não deixa
As horas e as palavras fogem
Na voragem da madrugada
Fica o silêncio
Deitado a meus pés
Quero fazer um poema
Mas as palavras não acordam
Sem dia e sem voz
Quero fazer um poema
Mas o tempo não deixa
As horas e as palavras fogem
Na voragem da madrugada
Fica o silêncio
Deitado a meus pés
Quero fazer um poema
Mas as palavras não acordam
Do teu ar bucólico e só
Da gente encontrada nas esquinas
Do cheiro a lareira mal apagada
Do carro parado com passageiros esquivos
Do cão que ladra à minha passagem
Do vento que sopra nos eucaliptos
Da coruja que pia perto da capela
Do gato à procura de carinho
Do jardim que amacia os meus passos
Da vida a correr lentamente
Sem dor
Nem chuva
Nem tormento
A nostalgia de um local que, apesar de precário, era uma catedral de conhecimento e vida.
Ali se guardam histórias, sabores e saberes, caras e corpos; olhares ingénuos e perscrutantes, palavras e pensamentos por soletrar.
Ali se guardam confissões de amor e a má língua das senhoras vizinhas; bebedeiras leves e profundas das gentes da terra, e o nó na garganta dos que, por decência, temiam falar.
Ali se guardam zangas de namorados, encontros e desencontros de amantes; fingimento dos que já não se amam e a comodidade dos que querem ficar juntos.
Ali se guarda a história de uma aldeia desertificada, a seu tempo conhecida por Vaticano, onde as raparigas, em grupos, se juntavam no largo, e os rapazes apareciam em catadupa à procura de companhia.
Ali se guarda a memória das noites de Verão na eira, dos bailes na casa da Albertina, das alcachofras a crepitar na fogueira de Santo António, e do mata junto ao coreto.
Ali se guardam a vida e a morte, a verdade e a mentira, o pranto e a alegria, o orgulho e o preconceito, a desfaçatez e o recato.
Ali se guarda a história de A-dos-Ruivos, contada e recontada mil e uma vezes; ali, no Café da Rosárita, a que alguns chamavam por escárnio e mal dizer - o Correio da Manhã!
Rosárita, uma personagem ímpar, imponente no tamanho e porte, sabia tudo da terra e muito mais; todos lhe contavam os acontecimentos do dia, encostados a um café mal tirado.
Rosárita, papel principal num dia a dia de natureza, nem sempre dourada.
Há muito que a não vejo. Para ela o meu cântico de Natal, o meu louvor, o meu bem-haja pela cor que imprimia àquela aldeia, num tom quase monocórdico mas cheio de intenção pacificadora.
Bom Natal a todos os Ruivenses.
Quero voltar a ser criança
Preparar o Natal
Pintar os dias da cor das romãs
Cheirar a lenha queimada
Comer pão quente e manteiga ou gemada com torrões de açúcar
Pular de árvore em árvore
Trincar azedas nos campos
Vestir as bonecas de papel
Brincar com os carrinhos dos primos
Crescer em amor
Voar com os pássaros
Alegrar-me com as borboletas
Sonhar com os poetas
Esperar um amanhã diferente
Quero superar a pandemia
Evitar grupos de pessoas
Hibernar como o caracol
Acordar num mundo limpo
Sem galanteios inúteis nem falsos namoros
Sem internet
Nem notícias
Nem maldade
Nem vírus
Guardei os pecados na mala
(In)satisfeita
Corri para casa
À espera das obras na capela
Guardo o segredo
Na casa em ruínas
À beira da estrada
Quando passo e olho
Recordo tuas mãos
Rolando as pedras
Teus olhos azeitona
Brilhantes de desejo
Teu rosto de aveia
Fundido em mim
Meu corpo frágil
A tremer de emoção
Quando entro no casebre recordo
As sombras que já foram sol
As lágrimas que já foram pérolas
A paixão que já foi amor
E nós
Perto de Deus
Num breve instante
Sinto o vento Oeste
No telhado
Esfrego as mãos frias
Aqueço o sonho
Danço com flores
E com elas
Planto o jardim
Do crepúsculo da vida
Na árvore verde
Esperança
Na lagoa azul
O céu
No chão castanho
Restolho
No coração vermelho
A vida
No branco infinito
Eternidade
No Covão profundo
A insónia