terça-feira, 26 de julho de 2016

Ubiq

Era um cão maravilhoso, neto de campeão do mundo da raça, que não  conheci  a não ser por fotografia e por relatos entusiastas.

Um " Pointer " de pelo curto e bem escovado que, de tão veloz, quase tinha o dom da ubiquidade. E assim lhe foi posto o nome, Ubiq!

Quando perdido, choravam por ele.
Quando em casa, oferecia as afáveis bochechas a umas palmadas carinhosas.
E uivava, e uivava, quando o provocavam. Não que adivinhasse a morte. Uivava só!

Mas um dia, morreu.
A sua fotografia permanece viva no corredor de minha casa, entre outras que me afagam a pele à passagem regular naquele funil que me estrangula e amedronta.

Lá, continuam muitas outras fotografias há anos.
Meigas, mas não as vejo. Sinto-as apenas.

E o Ubiq, sentado no topo do móvel, prazenteiro, encoraja-me a continuar, sem receio.
Até quando?

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Oeste


Fui à aldeia. Numa viagem esperada.

Vacilava a cada quilómetro de alcatrão esburacado, a cada curva mais apertada e a cada rajada de vento que soprava por entre as folhas dos eucaliptos que, de tantas caírem, se transformavam em tapete à espera da minha chegada.

Saí do carro. Deparei-me com um luxuriante jardim que, de tão bonito e bem tratado, me deixava envergonhada por não o beijar e abraçar.

Era feito de manto verde, salpicado com malvas coloridas, onde sobressaiam umas centenárias oliveiras que me levavam a idolatrá-las.
Choravam comigo os amores e desamores da vida, porque lhos confidenciara e sussurravam-me que a indiferença que eu parecia mostrar, era apenas e só a máscara para todo o receoso desejo de ali estar.

Entrei em casa. Olhei à volta. Vi folhas caídas nuns metros quadrados inúteis e uma cama atrevida onde me estiracei para o meu descanso habitual. Adormeci.

Mais tarde, com uma picada de mosca que me fez acordar, voltei a olhar e concluí que tudo ali estava cinzento, inerte e com falta de calor humano, o que me entristecia.

Rapidamente pensei, é hora de mudar o cenário.
Vou fazê-lo e convidá-lo a visitar-me. Lá!!!

quarta-feira, 20 de julho de 2016

FCUL

Fui ao meu local de trabalho e encontrei um ambiente completamente deserto e tristonho. Estamos em férias, é isso, disse de mim para mim.

Num gabinete e numa secretária onde ainda impera alguma arrumação, encontrei recados alinhados  em post it's vários, envelopes fechados e abertos, colocados em sítio certo e uma cadeira giratória a derreter com o sol que entra pela nesga da janela.

Olhei em volta e o doce testemunho do meu inabalável amor, colocado em tudo aquilo que ali tenho feito, esgueirava-se pela porta que tinha deixado aberta.


Como desculpa à minha falta de comparência, agarrei-me ao argumento de luta pela solução de uma patologia há algum tempo vencida.

E porque a reabilitação me parece, também, estar a decorrer dentro da suposta normalidade, vou dar oportunidade ao medo de se transformar em coragem.

Na segunda-feira vou trabalhar. Com cuidado!

terça-feira, 19 de julho de 2016

Mais um dia

Sem nada de especial a apontar.

Apenas uma avenida, envelhecida de lojas, transeuntes e calçada, com um Tutu que se pavoneia de um lado para o outro à espera de que alguém o note e lhe alimente o seu modo de estar.

Expõe a sua prestabilidade. Compra um sumo aqui e entrega-o ali. Agradecem e ele faz uma vénia servil ao receber umas parcas moedas castanhas.

E continua  avenida acima e abaixo, inspirando confiança à vista de todos os que o conhecem. É tido e chamado, em boca pequena, pelo " não  faz nada  ".

Então do que vive? Também de uma, igualmente, parca pensão que lhe  foi deixada pela senhora sua mãe! Prestimosa, tratava o filho como se conseguisse aglutinar, naquele bom rapaz, todo o amor que gostaria de ter gozado.

E assim vão  passando os dias, numa recuperação morna, à  espera que a avenida  rejuvenesça. Que os transeuntes  fiquem  mais novos, que a calçada  tenha mais passadeiras anti-derrapantes que nos suavizem a travessia e que o Tutu seja o mesmo de sempre, a alguns metros de nós, mas com a sabedoria dos anos.


segunda-feira, 18 de julho de 2016

Uns óculos

Alguém me disse:

" Olha, deixaste aqui os teus óculos  escuros.
   É sempre a mesma anarquia, deixas tudo em qualquer lugar ".

Fiquei um pouco surpresa e confusa. Nada me fazia crer que ali estivessem as minhas lentes com cor, que me pacificam a fotofobia. Costumo deixá -las no carro.

De esguelha, atrevi-me a olhar.
Eram uns Ray Ban acastanhados, que se riam para mim pedindo que os acarinhasse.

Momentaneamente perpassou-me um turbilhão de ideias. São  meus. Não são meus. São giros, modernos e ao espelho percebi que tinham sido feitos para mim. Gostava tanto deles. Ficavam-me mesmo bem.

Muito vaidosa e convencida da minha inverdade, respondi ao meu companheiro: não faço mesmo ideia de como é que eles vieram aqui parar!

Sentia um amargo de boca ao proferir estas palavras, por mentirosas,  ao mesmo tempo que pensava e pensava. De onde raio teria saído aquele bonito objecto que, calado e quieto no seu canto, me piscava o olho?

Os meus pensamentos eram triturados em palavras mudas, engolidos em saliva seca e digeridos com a dificuldade de quem come em excesso.

Ao fim de algum tempo e depois de muito massacrar a minha lembrança, veio-me à ideia que, no dia anterior, tinha tido a visita de uma das minhas filhas.
Ora aí está. Fácil, claro e indubitável 
Eram dela!

Fiquei contente com a ideia de não ficar com uns óculos que não me pertenciam. Especialmente por serem da minha filha. Tirava de cima de mim o peso do que se não deve fazer. Delito pequeno que pesaria sempre que a memória se vestisse de transparente!

Muito empolgada, balbuciei alguns vocábulos efusivos ao que alguém me respondeu: " És cá uma  barreteira "!

E eu, incrivelmente corajosa, retorqui:

" Nem imaginas quanto "!!!

domingo, 17 de julho de 2016

Fisioterapia

Caseira, diária, artesanal. Caminhada.                                                                                                
Assim, neste ritual de fim de tarde, num dia de calor quente, lá fui andando até um largo onde os pombos, por serem tantos, nos confundem os passos. Em frente há uma igreja de degraus polidos, cansados da subida e descida dos ( in ) fiéis que tombam lá dentro no peso das suas preces.

Uma esplanada. Pejada de velhos que bebem avidamente a frescura do fim da tarde. E lá, encontrava-se uma senhora gorda, por mim conhecida, desejosa de receber visitantes risonhos à sua mesa. Sentei-me. Comecei a ouvir um desfiar de lamentações que não me eram de todo desconhecidas.

E eu, com tanta sede e sem ouvir quase nada do que a velha senhora dizia, bebi uma água . Mas a gula segredava-me ao ouvido que um gelado seria o indicado para aquele momento.

Pedi o gelado. Só  havia os que eu não  queria. Atravessei para o outro lado da rua na ânsia de saciar o meu desejo. Infrutífero o meu esforço.

Voltei à  esplanada. Sentei-me de novo. Ainda consegui ouvir um chorrilho de disparates que, de tão  grandes, até  nos arrefecem a alma.

Sorrateira, levantei-me para voltar à minha caminhada. Desolada com a falta do doce que me havia de fazer salivar até  que a língua  me doesse.

Perto de casa, longe de imaginar que, numa loja de bairro numa esquina mal construída, me ofereciam o tal gelado que veio adoçar  o esforço  da caminhada, num dia de trinta e muitos graus.

Dia 26, próximo, serei reavaliada e então  terei, por certo, uma fisioterapia  diferente. Melhor?

Sem gelado, sem pombos, sem incautos e provavelmente sem tantos graus centígrados . Quem sabe?!



sábado, 16 de julho de 2016

Esta noite

Ao jantar, entre bivalves ( vindos da Cervejaria Esperança ) a nadar num exíguo  mar esverdeado e os comentários acalorados sobre os  acontecimentos  quentes do dia, ergueu-se uma grande verdade:

"Só  tenho medo do escuro "!

E esta verdade é  tão  grande, como é  grande o medo  de estar aqui, hoje, a esta hora, neste local onde, por um motivo qualquer me pode entrar casa adentro, um intruso de arma em riste e cercear a minha liberdade.

É  noite e o escuro já  se faz ver.

Então vou trancar a porta, fechar as janelas, acender as luzes todas e tentar dormir!

Até  amanhã.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Era pequena...

Era pequena, mesmo muito pequena.

Aprendi com os meus a dizer e a escrever ao contrário.
Nomes. Próprios.

Otrebla
Saimerej
Oiligriv

Eram três  irmãos de educação esmerada e muito disciplinada. Rígida mesmo.

Alberto, o mais velho dos três  irmãos. Sério, fechado, de poucas palavras.

Jeremias, o do meio, menino sandwich, menino da mamã.
Generoso em toda a sua  forma de ser, estar  e fazer.

Virgílio, o irmão  mais novo que apareceu fora de tempo.
Alegre, comunicativo e viajante.

... e foi neste ambiente, com uma avó que sabia música e gostava de ler e um avô austero e impenetrável que me comecei a sentir gente.

Mas havia  o outro  lado da medalha que era tão bom ou melhor do que este.

Num ambiente que oscilava entre  a cidade e a ruralidade crescia uma criança onde o amor e a liberdade eram o alimento principal para o dia a dia. Um ambiente natural onde sobressaltava a cultura das gentes boas.

E assim foi sendo  durante anos. Até que a criança se tornou Eran. Para sempre.