quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Quero fazer um poema



 Hoje

Sem dia e sem voz

Quero fazer um poema 

Mas o tempo não deixa

As horas e as palavras fogem

Na voragem da madrugada 

Fica o silêncio 

Deitado a meus pés 

Quero fazer um poema

Mas as palavras não acordam



segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A-dos-Ruivos



 Saudades

Do teu ar bucólico e só

Da gente encontrada nas esquinas

Do cheiro a lareira mal apagada

Do carro parado com passageiros esquivos

Do cão  que ladra à minha passagem

Do vento que sopra nos eucaliptos

Da coruja que pia perto da capela

Do gato à procura de carinho

Do jardim que amacia os meus passos

Da vida a correr lentamente

Sem dor

Nem chuva

Nem tormento  



sábado, 5 de dezembro de 2020

Conto de Natal

 A nostalgia de um local que, apesar de precário, era uma catedral de conhecimento e vida.

Ali se guardam histórias, sabores e saberes, caras e corpos; olhares ingénuos e perscrutantes, palavras e pensamentos por soletrar.

Ali se guardam confissões de amor e a má língua das senhoras vizinhas; bebedeiras leves e profundas das gentes da terra, e o nó na garganta dos que, por decência, temiam falar.

Ali se guardam zangas de namorados, encontros e desencontros de amantes; fingimento dos que já não se amam e a comodidade dos que querem ficar juntos.

Ali se guarda a história de uma aldeia desertificada, a seu tempo conhecida por Vaticano, onde as raparigas, em grupos, se juntavam no largo, e os rapazes apareciam em catadupa à procura de companhia. 

Ali se guarda a memória das noites de Verão na eira, dos bailes na casa da Albertina,  das alcachofras a crepitar na fogueira de Santo António, e do mata junto ao coreto.

Ali se guardam a vida e a morte, a verdade e a mentira, o pranto e a alegria, o orgulho e o preconceito, a desfaçatez e o recato.

Ali se guarda a história de A-dos-Ruivos, contada e recontada mil e uma vezes; ali, no Café da Rosárita, a que alguns chamavam por escárnio e mal dizer -  o Correio da Manhã! 

Rosárita, uma personagem ímpar, imponente no tamanho e porte, sabia tudo da terra e muito mais; todos lhe contavam os acontecimentos do dia, encostados a um café mal tirado.

Rosárita, papel principal num dia a dia de natureza, nem sempre dourada.

Há muito que a não vejo. Para ela o meu cântico de Natal, o meu louvor, o meu bem-haja pela cor que imprimia àquela aldeia, num tom quase monocórdico mas cheio de intenção pacificadora.

Bom Natal a todos os Ruivenses.