quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Matriarcado

Oriunda de uma família onde as mulheres, muitas, fazem fé, já nada fazia prever que aparecesse um rapaz para, enfim, quebrar a linhagem.

Por incrível que possa parecer, a inesperada notícia apareceu, como por magia, embrulhada numas cuecas com a legenda " Avô Armando ".
Oferecidas com um sorriso de orelha a orelha que, de tão rasgado, nos toldava o discernimento.

Estávamos perante uma mulher, maravilhosamente grávida de alegria.
Incrédula, olhava para nós sem perceber a falta de compreensão.

Como habitualmente, enérgica, decidida e eufórica, pulava à nossa volta como qualquer criança a quem se oferece um brinquedo novo.
Vamos ter o prémio máximo e vocês não percebem, dizia ela!

Fez -se luz. Só naquele momento.
Olhei para o avô a quem tinham sido oferecidas as tais cuecas e pareceu-me ver um bando de pássaros entoando trinados sobre nós.

O espanto deu lugar ao fascínio e vislumbrei rapidamente o que aí vinha.
Mais um neto.
Irrequieto. Surpreendente.
O Shi!!!

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Colégio Valsassina

Alguém me esperava com ansiedade e expectativa.
Não ouvi o sinal.
Não li a mensagem.
Por quê?
Porque aquele objecto louco e moderno, que nos leva a situações diabólicas e conturbadas, neste caso, tinha sido necessário.

Mas ela estava lá.
Sozinha, encostada numa rústica vedação de madeira.
De telemóvel em punho, ansiava por um rosto que não aparecia. O meu.

Com os meus níveis  de adrenalina em cima, cheguei.
A par do suposto  atraso, levantava-se a dúvida de que os relógios pudessem não estar em sintonia.
Estariam?
Ou seria mesmo o meu atraso motivado pelo drama que é o trânsito das nossas vidas?
Aquele ar angelical, de caracóis rebeldes, deixava-me sempre esfuziante mas depressa se desvaneceu o sorriso.
Faltava o saco do equipamento da dança.

Caminhámos para a esquerda, para baixo.
Para cima, para a direita. Escadas  e mais  alcatrão.
Ali, sem trânsito, com as ruas quase desertas, encontrámos algo no chão que a mim me  pareceu uma pedra.

Era um blusão.
Preto, perdido no meio do nada, chorando o fim que lhe coubera em sorte.
O esquecimento.

Mas ela, olhando-o com um laivo de ternura, agachou-se, acariciou-o e pegou-lhe sem palavras.
Ficaria ali à espera que alguém o colocasse no lixo ou, por mero acaso, nos perdidos e achados.

Contentes, já com o saco na mão, encaminhámo-nos para a saída onde, um avô amuado, nos esperava no carro.
Terminámos o nosso fim de tarde perspectivando um lanche, conversando de tudo um pouco, inventando temas e baralhando  palavras.

E os nossos corações, apaziguados,  sorriam ao diálogo que lesto se mantinha entre nós :

"... mas afinal porque é que nunca mais chegavas? "

sábado, 17 de setembro de 2016

Ontem

Noite.

Estou só  mas cheia do que me falta.
Pessoas, cores, bulício, estrada, amor e até silêncio.
Toco na minha pele e sinto o beijo dado, há pouco, com inocência e emoção nas linhas que me sustentam as pernas desgastadas.

Estou só  mas cheia do que me falta.
Dia, noite, uns após outros, umas atrás doutras.
Força, amizade, compreensão e até irreverência .
Contemplo o vazio à espera de que algo aconteça. Nada.
Apenas a brisa a avançar para mim, como companheira efémera  que me traz à realidade.

Estou só mas cheia do que me falta.
Equilíbrio, confiança, objectivos e até mais vontade para viver.
De relance olho o relógio . Daqui a pouco é dia.
Outro dia e neste que aí vem, então sim, ficarei mais só.
Sem brilho e sem cheiro, sem gargalhada e sem ralhos, sem ensinamentos para dar.
Só  me restará  a enorme verdade que a muitos falta:

   " Nunca é tarde para fazer o que está certo ".

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Ódiacho

Lagos.

Depois de um repasto suculento nesta antiga cidade de marinheiros e séculos de história, surge no carro, um chorrilho de gargalhadas, que não é frequente acontecer.

Chorámos a rir. Até às  lágrimas.

Os três. Eu, neta e avô .

Odiáxere! Ódiacho!

Fonia semelhante que deu aso a tamanho disparate que mal podíamos  acreditar e dificilmente explicar.

Ao lado e à distância, com admiração e atitude ostensiva, erguia-se uma frente de fogo que, ainda assim, não nos fazia calar e nos ouvia indiferente.

As nossas gargalhadas soltavam-se quais labaredas a avançar encosta abaixo.

Constantes. Rápidas. Sonoras.

Altas. Crepitantes. Ameaçadoras.

O fogo fazia parar a vida na Serra de Monchique.

O contentamento quase nos fazia parar na estrada, sendo que, por distração absoluta, nos enganámos na saída.

Aí, a brincadeira ficou um pouco comprometida. Rápido voltámos ao caminho certo e procurámos o rumo do hotel.

À chegada e porque a noite prometia festa, fomos ouvir um pouco de música.

Fraca, incipiente. Pimba internacional.

Não conseguia agitar os nossos corações que ainda se encontravam cheios de calor, nem apaziguar as nossas barrigas que ainda se encontravam doridas de tanto riso.
As bocas, essas, descoloridas pelo fumo cinzento que se fazia chegar à cidade, abriam-se e fechavam-se pelo sono que não tardou em surpreender-nos.